segunda-feira

Como vai você?


 

Um hogar


 

História da pós modernidade


 

8M


 

Broken doll


 

Vou sempre querer voar


 

Fome de tudo


 

A luz de fora é o que me salva


 

Sozinha

Meu pai tinha um restaurante no centro de uma cidade histórica  
Ele e minha mãe faziam pizza
E outras coisas
Mas pizza era o que faziam de melhor. 
E ali, 
Em uma mesa no centro da história do ciclo do ouro, 
algumas mulheres se sentavam desacompanhadas
No geral, gringas. 
Se sentavam, pediam uma pizza,
as vezes uma cerveja. 
E comiam sozinhas. 
Ficavam só ali por horas
Quantas horas quisessem. 
Sozinhas. 
Eu as olhava com admiração. 
Meu pai as olhava com estranheza: 
que graça tem sair assim? 
Não ter ninguém pra conversar? 
Minha mãe, não sei. 
Nunca me disse como as via. 
Hoje sou eu,
estrangeira
estranha.
Sentada em um café 
acompanhada por poesia, 
uma cerveja,
essas linhas 
e muitos olhares como os do meu pai.

sexta-feira

Fresta

 Vou vivendo uma vida boa, boa o suficiente, com amor o suficiente. Trabalho, cozinho, me exercito, tento manter corpo e mente sãos. Ao finais de semana, esfumo o peito. Mas o diabo está me olhando por uma fresta. O diabo está sempre ali me olhando por uma fresta, esperando que eu pare e baixe minha guarda. E quando o faço, ele se encolhe feito água, passa pela fresta e me inunda: será que não é hora de ir? Vai ficar aqui pra sempre? Vai viver essa vida pra sempre? O resto do mundo te espera. O diabo é mirabolante, megalomaníaco, delirante, egoísta. O diabo me impele a entrar eu mesma por frestas, de máscaras, de fronteiras, de saias e de corações. O diabo me encharca de desejo. Às vezes consigo fazer uma oração e exorcizá-lo. Ele volta pra sua fresta e eu volto pros meus dias que são bons o suficiente. Só que cada vez que o diabo passa por essa fresta, ele deixa em mim um pouco de si  e deixa também uma pitada de culpa por desejar, bem lá no fundo, nunca ser exorcizada.

terça-feira

Meus golpes de sorte são no feminino

 



Sento para comer e, como de costume quando estou sozinha, abro um livro. Digo “abrir um livro” por força do hábito porque há pouco tempo precisei me adaptar às versões digitais para conciliar a leitura com meu motor interno que me impele ao movimento. Uma biblioteca não cabe na mochila. Assim como tantas outras coisas que tentei fazer caber na mala, precisei renunciar aos meus tão preciosos livros. Precisei deixá-los. Bom, o que faço então, no fim das contas, é menos poético, ligo o kindle.

Escolhi o que ia ler antes de sair para o restaurante, um livro que me foi sugerido por uma quase desconhecida há uns meses atrás quando me abri com ela sobre o que tenho carinhosamente chamado de “o projeto”: sair andando sem rumo a procura de respostas para as quais sequer conheço as perguntas. Ligo o kindle e já na introdução sou invadida por aquele famigerado sentimento de identificação: “eu poderia ter escrito isso”. A inspiração para os contos da autora é sua estadia em Buenos Aires. Ela é de Minas Gerais. Fala sobre memória e esquecimento, temas que me são tão caros.

Trata-se de um livro de contos e o primeiro deles já me leva às lágrimas. O segundo, de 3 linhas, nos dá instruções sobre como carregar malas pesadas. A obviedade da orientação me perfura como faca: não as carregar! Há que deixar os livros, há que deixar. Paro. Estou em um restaurante, não poderei seguir lendo ali se quiser evitar a vergonha de chorar em público. Reflito sobre como às vezes nada parece se encaixar e a vida te entrega de bandeja uma sutileza quase imperceptível que dota algumas coisas de sentido. Não tudo, mas às vezes um ponto de luz já é suficiente para seguir caminhando.

Já disse que o livro foi me sugerido por uma quase desconhecida. Nos vimos uma vez e conversamos só por algumas horas, mas foi o suficiente para que ela notasse que eu precisava lê-lo. E ela não só me o recomendou, mas me enviou uma cópia digital dele. Ela se esforçou para que uma quase desconhecida pudesse experimentar algo que, por meio de sua aguçada sensibilidade de escritora, percebeu que eu precisava. Senti como se algumas peças estivessem se encaixando: eu precisava conhecer Thamires naquele dezembro em que ambas estavam tão atarefadas. Eu precisava conhece-la ali pra que eu tivesse esse livro nas mãos HOJE. Enquanto contemplo a beleza desse gesto e quase posso ver as mãos do destino trançando seus fios em seu infinito tear, percebo que o quase-choro já passou e que estou pronta para tentar o próximo conto.

O terceiro conto narra como a personagem sentiu que saiu de Minas Gerais, andou quase dois mil km, caminhou 30 quadras sob um sol de 40 graus só para encontrar, em outro país, um poema de Drummond, também mineiro como nós. Incrédula, penso que talvez eu e Flávia sejamos a mesma pessoa em linhas temporais diferentes. Olho para o título do conto, ele se chama “Golpe de sorte”.

Thamires foi um dos tantos golpes de sorte da minha vida nos últimos meses e me lembro que eles só aconteceram porque eu liberei espaço na minha mala, porque deixei meus livros. A falta dos livros às vezes pesa mais do que a mala inteira, mas hoje, logo hoje, Thamires veio do passado me apresentar Flávia, que fala sobre golpes de sorte. E hoje me bastará deixar o livro digital de Flávia guiar meus pensamentos mais do que a saudade de tocar meus livros físicos.

sábado

Encharcar-se





 Gosto do meu corpo no seu, dos seus lábios macios, da sua língua safada invadindo a minha boca com o cuidado de quem pede licença, o mesmo cuidado como você invadiu a minha vida com sua mania de substantivar verbos e suas canções melosas cantadas pela voz mais doce e o olhar mais cheio de expressão que já vi. Gosto da sua perna cruzando com a minha, criando o encaixe perfeito de dois corpos que de iguais só têm o desejo que os une como um só. Gosto de como você me olha com vontade logo antes de me fazer de manga na sua boca. Gosto de como seus dedos me fazem questionar como passei tantos anos duvidando que milagres existem. Gosto de percorrer minha mão no seu corpo e sentir sua pele se arrepiar, ora de cócegas e ora de vontade de mim. Gosto de te tocar e finalmente escutar minha canção favorita entre todas as que saem da tua boca, aquela que você canta enquanto nos encharcamos uma na outra.

quarta-feira

O ego como limite da soridade

    Sou feminista, pioneira, defendo que mulheres façam o que querem, que busquem sua independência financeira e emocional e que se vistam como desejam. Admiro a coragem das que se atrevem, das que saem, que correm riscos, que se portam como preferem e só se depilam se bem entenderem. Mas veja bem, você não é mulher pro meu filho. Aventureira demais, sonhadora demais, egoísta demais. Até vejo qualidades em você, mas veja bem, você já passou dos 30. Quando vai se estabelecer, quando um filho vai caber na sua vida? Um dia você entenderá, um dia você será mãe e vai entender. Se for mãe de um filho único, então, entenderá perfeitamente que mulheres como você nunca serão as noras que sonhamos. 

domingo

Liberdade


Ah, liberdade! Que preço é esse que você está me cobrando pra te ter! De onde foi que tirei que preciso tão obstinadamente de você? Por que você é tão cativante e atraente a ponto de me convencer a largar tudo, abrir mão de amores, do conforto da presença e do contato dos que me amam. E por que você segue me exigindo renúncias? Não dá pra ser um preço que se paga uma vez só? Vai ser sempre esse ininterrupto processo de desapegar? Disse o poeta que você é o espaço que a felicidade precisa, mas até agora só se mostrou um espaço cheio de angústia e saudade. Será a solidão o preço que se paga pra ter você? E, ao fim e ao cabo, o que raios eu faço com você? O que raios Sabino sabia e eu não sei sobre você?

terça-feira

Distância e saudade




 Sinto você se distanciando. Se paro para pensar, percebo que essa distância já existia há tanto tempo que sequer sei dizer quando começou, talvez no momento mesmo em que eu finalmente me abri pra me aproximar. Mas dessa vez a distância é real, os dias avançam, as mensagens, quando respondidas, são frias, como se eu não fosse mais relevante. Leio um poema que me faz lembrar nós dois juntos e lamento não ter lindo mais poesia com você ou talvez para você. Me pergunto se a distância que se impõe hoje é porque li pouca poesia, porque escrevi pouca poesia e ela acabou ficando só na minha alma. Vi que um dia desses você escutou uma de nossas músicas, a mais bela de todas, me pergunto se chorou minha falta como choro a sua agora. Eu, por outro lado, sigo evitando aquela playlist que fizemos juntos, aquela música do girassol da cor do seu cabelo, aquela dos ojos morochos más lindos que vi, ou aquela do Pixies que sempre tocava na nossa TV. Não dá, trazem memórias demais, saudades demais, lágrimas demais. Me disseram que preciso sentir raiva, que é raiva que neutraliza a nostalgia. Tento lembrar do sentimento de solidão que sei que existia, mas é dos dias de preguiça em que levávamos o colchão pra sala de que me lembro, é da sua risada exagerada e da minha mão na sua caminhando na rua. Sei que já sentia sua distância antes, mas me lembro também do amor que me invadia quando me deitava no seu abraço, o lugar mais aconchegante que já conheci. Abro o caderno pra escrever essas palavras pra ver se alivia minha tristeza, mas me apego a essa saudade porque ela é tudo o que tenho de você agora. Não quero que ela passe, não posso aceitar que você se vá para sempre.

sábado

Sem título

 


    Meu grande amor, eu te deixo ir, eu te liberto. Não que você precise de licença ou permissão, não que você careça dessas palavras pra seguir seu caminho. Mas é que eu precisava que você fosse meu. Não sei ao certo se precisava, mas queria tanto, quero tanto, que não conseguia aceitar que você estaria melhor sem mim, por mais que já soubesse, que já sentisse que minha presença era na verdade seu maior revés. É que eu queria tanto fazer dar certo, meu amor! Você queria tanto também, eu sei! Hoje senti em você a calma que me dizia que tanto almejava e que não encontrava comigo. Queria dizer que talvez você ainda não perceba, mas sei que sua percepção sobre si mesmo se refinou ao mesmo passo em que eu me distanciei. Você enxerga com clareza agora, eu sei. E se vê melhor sem meu véu cobrindo seus olhos. Eu nunca quis ser esse véu, me desculpa, mas hoje vejo que fui! Eu te liberto, com dor, com vontade de que muito pudesse ter sido diferente pra que nosso amor pudesse continuar sendo. Não sei quando conseguirei de fato libertar a mim mesma dos meus anseios de você ser parte das realizações dos meus sonhos, mas hoje, honestamente, te liberto. E talvez esse seja o primeiro passo. 

domingo

Banho de banheira



 Aos 31, tomei banho de banheira pela primeira vez e recebi uma massagem profissional também pela primeira vez. Aconteceu aos 31 porque sou pobre. E olha que entre os pobres do meu país, nem tão pobre assim eu sou. Não é que eu não pudesse pagar, mas é que a pobreza não tira de nós só o dinheiro para realizar nossos sonhos, ela tenta tolher por completo nossa possibilidade de sonhar. Tenta, porque se tem uma coisa que pobre faz bem é não desistir de sonhar. Tomei banho de banheira pela primeira vez aos 31 anos porque os lugares em que fui onde tivesse uma banheira eram sempre lugares em que aquilo não me era permitido. Eu queria muito quando criança, banheira lembra piscina e criança gosta de piscina. Dizia que queria ter uma banheira em casa quando crescesse e me lembro de escutar que ter isso era bobeira, gasta muita água e a gente acaba não usando. Gasto a toa, bobeira. Cresci sempre escolhendo hotéis mais baratos porque pra quê gastar com banheira no quarto? Sempre quis transar na banheira, mas acabava não indo ao motel pra isso porque tem boleto chegando no fim do mês e, putz, motel com banheira é uma grana. Não que eu não gastasse dinheiro atoa com outras coisas, mas a banheira sempre ficou ali em último plano mesmo. Não tinha meios de conhecer a beleza de uma banheira quente aliada às luzes baixas, a música certa e três bolas num baseado. 

Se me importava pouco em tomar banho de banheira, imagina então receber uma massagem profissional. Isso aí sequer passava pela cabeça. Pensando bem, já fiz massagem sim, mas aquelas redutoras pra emagrecer, afinar, desinchar e o caralho a quatro. Essas eu já fiz bastante. Mas isso aí é tão básico, tão essencial, que não resta ao pobre senão arrumar dinheiro pra fazer. Como assim não tem? Pra quê você precisa juntar dinheiro pra aquela viagem? Você nem vai conseguir ir mesmo, isso aí não é coisa pra você, emagrecer é mais importante. Mas massagem relaxante não precisa, afinal, se você relaxar pode ser que saia desse lugar confortável de autossabotagem e autopiedade. É uma bosta, mas é o que vc conhece, lembra que o combinado era não relaxar? 

Meu subconsciente começou a falar ali em cima e eu acabei divagando. São as três bolas no baseado que fazem isso comigo, não tem jeito. Tava falando sobre ser pobre e não ter ideia do bem que faz uma banheira quente e uma massagem. De ser pobre e ter acesso só ao que os ricos escolheram e decidiram que eu posso. Eles escolheram que eu posso e devo consumir um discurso ideológico que tenta me convencer de que tá tudo bem do jeito que tá, que assim é justo. Mas escolheram que não preciso consumir banho de banheira e massagem. Bobeira. Eles sabem que se eu relaxo, percebo que trabalhar menos é melhor e que eu posso possuir menos e consumir menos pra ser feliz. Se relaxo, eu paro, eu não trabalho. Se relaxo, eu liberto a criatividade que fui treinada pra não explorar. É que eu fui treinada pra trabalhar e isso eu faço bem. E criativa eu sou mais ousada, mais confiante e mais perigosa.

segunda-feira

Tem gente que só sonha em ser gente

              Qual seu grande sonho? Comprar aquele carro que não sai da sua cabeça, conseguir aquela promoção que vai resolver seus problemas, ganhar na loteria... 

    Os sonhos parecem estar ligados com a própria noção de humanidade. Ter a capacidade de olhar para o futuro com alguma expectativa, de criar um ideal onde desejamos estar, é um dos atributos que nos homogeneízam como humanos. Pessoalmente, meu sonho é viver viajando, seguir conhecendo pessoas, culturas, saboreando comidas e apreciando vistas que antes não conhecia. Me reconheço como uma mulher privilegiada em vários sentidos, e um desses privilégios é poder estar agora mesmo perseguindo meu sonho. Nesse momento, eu, meu companheiro e nossas gatinhas estamos pousados em São Paulo, a cidade que não para, que é o céu para muitos e o inferno para outros tantos. E é a cidade que tem me feito questionar sobre sonhos, humanidade e desumanização.

    São Paulo escancara a desigualdade como nenhuma outra cidade que já visitei. E escancara também o egoísmo e o individualismo próprios de nosso tempo. A cidade parece se cegar para a crise humanitária que acontece aqui. Conversei com um amigo daqui sobre essa impressão e ele disse que você se choca ao ver tanta gente em situação de miséria, mas a consciência de que não se pode fazer nada faz com que, ao longo do tempo, as pessoas se acostumem e percam um pouco da sensibilidade. Parece que para viver em São Paulo, a cidade que nunca dorme, é preciso que você sim esteja adormecido, senão você não vive.

    Essa foto abaixo foi tirada na Praça da Sé, um dos principais cartões postais da cidade, parece que está acontecendo um evento reunindo várias pessoas, né? Podemos ver algumas barracas às margens da praça, talvez seja um evento mais longo e as pessoas estão acampando como nas raves que duram dias e onde os jovens brancos e ricos gastam rios do dinheiro de seus pais. Mas o evento aqui é a miséria, programada e financiada pelo Estado. Essa foto me faz pensar que estamos todos nós adormecidos.  

Praça da Sé, São Paulo. Novembro de 2021.

Eu olho para as pessoas dessa foto e me pergunto quais os sonhos desses homens, mulheres e crianças, mas a resposta nós já temos. Em outubro desse ano, um evento nos chocou profundamente, Rosângela Sibele de Almeida Melo, 41 anos, foi presa após roubar cerca de R$21,00 em miojo de um supermercado. Quando foi pega, explicou aos policiais que estava com fome e que precisava alimentar seus filhos. Se Rosângela fosse gente, talvez não teria sido presa, mas Rosângela mora nas ruas há dez anos, pra ela a lei serve para punir e cobrar os deveres, mas nunca para garantir seus direitos. Depois de 18 dias presa, ao sair do cárcere disse “Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha, irmã”.

Outro caso que não me sai da cabeça é de um vídeo que viralizou há algumas semanas de um senhor gritando em uma rua entre prédios em Brasília. Ele pedia algum pão ou leite, em sua voz soava desespero. Ele gritava “é fome, é fome!”. Esse senhor cujo nome nem sabemos também não é gente, foi desumanizado pelo Estado, que não deveria existir  se não fosse para proteger as pessoas. É desumanizado por todos nós quando olhamos para o outro lado e fingimos não ver. É desumanizado a cada quatro anos quando damos nosso voto e nosso apoio a projetos que visam marginalizá-los cada vez mais enquanto os super ricos multiplicam suas fortunas e criam herdeiros que vão continuar regendo o mundo e se certificando de que as coisas permaneçam exatamente como estão ao convencer-nos de que é assim que é justo. 

    No estado de coisas como são, a humanidade é dividida entre quem é gente e quem é bicho. Sem bem que ainda tendemos a ter ainda mais empatia com alguns bichos do que com os bichos humanos. Hoje lendo o jornal, me deparei com essa manchete:



A reação do dono do estabelecimento foi essa:

 


Agora você imagina o que Rosângela pensaria lendo essa notícia! Imagina o que ela pensaria se soubesse como minhas gatas são bem cuidadas! Talvez ela pensaria que se não conseguir nunca ser gente, ela bem que poderia pelo menos ser pet!

 E deixo Manuel Bandeira terminar esse texto:

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

 

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

 

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

 

O bicho, meu Deus, era um homem.


(O Bicho, Manuel Bandeira. 1947)

 

quarta-feira

Um desencontro com a beleza

 


    Essas são minhas pernas e essas estrias são minhas. Me lembro da primeira vez em que vi uma estria no meu corpo. Eu devia ter uns 13 anos, naquela época em que nossos corpos crescem e mudam muito rapidamente. Eu gritei a minha mãe, um grito cheio de desespero. Eu achava que tinha nascido pra ser bonita e sentia que aquelas estrias, que ali mesmo já sabia que seriam permanentes, estariam para sempre no meu caminho. 

    Eu fui uma criança bonitinha, magrinha, loirinha, bem dentro do padrão. Eu era esperta também, um combinação que atraiu muita atenção pra mim. Quando criança, me lembro de sonhar em ser modelo ou atriz. Eu era popular na escola. Cresci com a auto estima da menina branca privilegiada que era/sou. Hoje entendo que essa auto estima não é simplesmente construída, ela é roubada de meninas negras. E eu roubei isso delas e me destruí no caminho.

    Ao crescer, fui obrigada a lidar com rejeições e com a consciência de que eu era só mais uma menina normal. Não soube. Continuava achando que tinha nascido pra ser bonita. Em grande parte da minha vida, não importava onde eu estivesse ou o quão grandioso era aquilo que estava realizando, eu estava sempre preocupada com o quão gorda eu estava, pois essa era uma medida de beleza pra mim. Eu me olhava em todos os reflexos para verificar como estava, tomava remédio pra emagrecer, passava horas sem ingerir nada e depois comia compulsivamente. 

    Há alguns anos eu venho qauestionando a necessidade do belo e da excelência. Você já parou pra pensar o quanto já deixou de realizar porque acreditava que não construiria algo belo ou que não alcançaria a excelência? Eu gostaria de saber cantar e tocar algum instrumento, mas tenho consciência de que nunca serei excelente nisso. Mas será que eu não me divertiria no processo de aprender? Será que isso não poderia ser suficiente? Sempre que estou diante de algo que me emociona, eu sinto vontade de desenhar, mas só sei criar bonequinhos de palito e até eles são feios. Já escutei várias vezes que desenho é técnica e que técnica se estuda e se aprende, mas tenho a consciência de que nunca serei uma desenhista excelente, então nunca sequer cogitei explorar a desenhista medíocre dentro de mim. O medo de um resultado feio paralisa inícios, processos e recomeços em mim. O feio, o desimportante, o banal são fracasso pra mim. 

    Venho tentando descontruir esse medo do mediano por meio de três lugares principais: a arte, a escrita e a relação com meu corpo. Na arte, venho tentando me expressar por meio de colagens em madeira, alguns resultados eu amei e outros nem tanto, mas as horas em que passo me dedicando a isso são de uma tranquilidade e encontro comigo mesma muito intensos. Nesse momento da vida em que escolhi me desfazer da maioria dos objetos não essenciais, ainda cabe na mochila uma das minhas colagens mais representativas, ela virou meu totem e está sempre comigo para me lembrar de que, ainda que eu não possa tudo, eu posso muito. Ela não é bonita, mas não foi pra isso que ela nasceu.

A imagem é de autoria da Amanda Orleander
    

    A escrita sempre foi parte fundamental de mim. Ainda criança, me lembro de me sentar em minha mesa de estudos com algumas folhas em branco diante de mim, decidida a escrever um livro. Naquela época, acredito não ter sido ainda o medo do resultado que me paralizou, mas eu não sabia o que fazer. Sabe aquela sensação de ter uma ideia na cabeça e ficar completamente perdida na realização? Eu não tinha meios para aquilo e desisti com a mesma naturalidade e tranquilidade com que me sentei ali. Na adolescência, escrevia muitas cartas para minhas amigas e amigos e já usava a escrita para desabafar e colocar o pensamento em ordem. Na vida adulta, me vi diante da pressão dos trabalhos acadêmicos e de ter que escrever uma dissertação de mestrado relevante. Travei muitas vezes, quis desistir como desisti do livro sobre o meu avô quando pequena, mas acabou saindo um texto do qual ainda me orgulho. Hoje, escrevo uma espécie de diário público que me ajuda a lidar com minha própria pressão pelo belo. Não sou artista, não sou escritora. Amo quando escrevo algo que acho bonito, mas amo ainda mais quando escuto de pessoas próximas que eles conseguem me ver nos meus textos. Hoje mesmo, ouvi de uma amiga que ela sentiu minha essência nesse blog. Por que eu preciso focar na beleza dos textos se eu tenho  reflexão, intensidade e transparência? Não necessariamente no resultado, mas no processo.

    Quanto ao meu corpo, aprendi com minhas companheiras feministas que amá-lo é revolucionário. Que há beleza fora dos padrões de imagem que nos enfiam goela abaixo. Às vezes, olho pro meu corpo e vejo beleza, às vezes não. Mas a consciência de não ser bela não me paraliza mais. Eu olho para minhas estrias, controlo o desespero infantil que ainda me vem irracionalmente e tento mostrar pra mim mesma que essa é a casa da mulher que eu sou. Meu corpo realiza muito, produz muito, é ativo, é saudável, pode dar prazer a mim mesma e ao outro. Ele é muito mais do que a dualidade bonito versus feio. Eu não preciso achar linda cada parte do meu corpo, mas não respeitá-lo e sentir ódio ou asco por ele não é justo. Hoje eu sei que não nasci pra ser bonita. Na verdade, hoje tenho a tranquilidade de admitir que eu não tenho a menor ideia de pra quê raios eu nasci. Enquanto eu não descubro, vou traçando meu caminho no caminho.


quinta-feira

A potência dos encontros

    Ao longo desse processo de autoconhecimento pela escrita, percebo que algumas palavras se repetem na minha mente e nos meus textos. Quando estava inserida no ambiente acadêmico, usava um dicionário de sinônimos para diversificar o vocabulário usado, mas agora que a escrita tem outros fins, permito que as palavras se repitam e vou aprendendo com elas. Sinto que é minha alma reiterando minha essência, meus anseios e minhas necessidades mais íntimas. O título desse texto leva duas dessas palavras que uso e reuso com frequência, “encontro” e “potência”. Pra mim, a palavra “encontro” carrega um sentido muito mais profundo do que “estar diante de alguém”, significa abertura, questionamento, compreensão, troca. Para os que se permitem sentir, “encontro” significa afeto.  Já “potência”... potência é potência! É vigor, força, capacidade e intensidade.

    Em tempos de pandemia, os encontros físicos foram diminuídos a um nível sufocante para alguém que tira suas energias do contato com o outro. Eu quase me deixei sufocar até que entendi que eles não precisam ser físicos para serem potentes. Em Diamantina há quase um mês sozinha, sentada no assento da minha montanha russa pessoal, me permiti parar, me abrir, me conhecer, encontrar e reencontrar os outros e a mim. Em muitos desses encontros, o impacto foi mútuo e em outros provavelmente fui só eu quem senti. E esse segundo grupo de encontros não são menos potentes que os outros por essa razão. Tenho consciência de que nem todas as pessoas me marcarão da mesma maneira e que eu também não vou marcar a todos por cujas vidas passar. Já me cobrei isso, mas não mais.

    Suelen e Cleyviton me ensinaram sobre parceria e entrega. Natã é curiosidade, inocência, gentileza e empenho. Marius exalava coragem e força e me ensinou sobre crer e viver de acordo com suas crenças. Nayanna é acolhimento e paixão, me ensinou que se permitir encantar é uma linda forma de também encantar. Seu Kussu me ensinou sobre humildade e que a linha tênue entre o que se vende e o que não tem preço não é assim tão tênue para alguns corações. Há 3 senhores cujos nomes eu não sei, com quem conversei muito rapidamente em diferentes lugares, que me lembraram o quanto é bom dividir conhecimento e que a escola não é nem a única nem a melhor fonte de erudição. Lucas e Thomaz me ensinaram sobre alegria. Na verdade, eles não só me ensinaram, mas me contagiaram com ela de uma maneira muito inesperada. Eles também me lembraram de que uma vida com música é uma vida mais bem vivida.  Evelyn e Nicole me lembraram sobre como o feminismo nos fortalece e como podemos admirar e ser admiradas por outras mulheres. Com a gentileza que as é tão típica, elas me reforçaram um lema muito importante: uma sobe e puxa a outra, nem que seja por meio da inspiração. Taynã, que tem os olhos lindos e cheios de sonhos, me lembrou o quanto algumas coisas podem ser simples e como coisas simples podem ser prazerosas. E, finalmente, Fabrício, quem eu não imaginava reencontrar tão intensamente quando tudo me mostrava que o desencontro era certo.

    Sou grata pela vida e pelos encontros. E que a potência deles continuem sendo combustível para minha alma!


Esses são Thomaz Panza e Lucas Fainblat, músicos e desatoladores de carros nas horas vagas. 

                                    

segunda-feira

Vai

 Vai, desabrocha

Vira flor

Corta a linha do papagaio

E voa, mesmo com temor

Faz do medo um mundo cheio cor

Se chover, se chorar, se doer

Lembra que isso é vida

E volta fortalecida

Pra brincar, pra dançar, pra gozar,

Sem pudor.

Vai, flor!

sexta-feira

Um processo

 Texto escrito em 2019 e adaptado para esse blog


    Esse texto é um desabafo e um lembrete pra mim mesma do que venho buscando nos últimos tempos, ele serve pra que eu não me perca pelo caminho. Espero que  minha história inspire outras mulheres a se conhecerem e se respeitarem como são. Meu nome é Michele, tenho 28 anos e sofro por conta da relação com meu corpo há tampo tempo que nem sei mais pontuar onde tudo começou. Nessa foto estou eu com cerca de 17 anos. Eu me via gorda!


    Algum tempo após essa foto, ganhei alguns quilos e passei a realmente odiar o que eu via no espelho. Não se tratam de dezenas de quilos, uns 2 ou 3, no máximo. Aos 19, enfrentei um término com um então namorado por quem eu era muito apaixonada e ter sido rejeitada agravou uma relação com meu corpo e com minha imagem que já não era nada saudável. Nesta foto seguinte, estava há alguns meses tomando Sibutramina, um remédio horrível que causa inumeros efeitos colaterais, mas que te ajuda a perder peso. Depois de poucos meses, estavam todos os quilos de volta, claro. Foram quatro anos de uma dependência doentia com esse remédio: começava a usar, me sentia mal e culpada, parava, engordava, comprava o remédio de novo.



    Hoje, estava olhando minhas fotos para escolher as que ia usar para ilustrar esse texto e percebi que não importava onde eu estivesse ou o quão grandioso fosse o que estivesse realizando, estava sempre preocupada se estava gorda ou não. Talvez você se identifique com esse peso mental, infelizmente não sou a única a senti-lo. Nessa terceira foto, estou em Machu Picchu realizando um grande sonho. Viajei por 1 mês por três países, conheci pessoas e lugares que me marcaram profundamente. Em nenhum momento sequer deixei de ter consciência do meu corpo e da minha imagem, estava sempre me olhando no reflexos para avaliar como me parecia.




    Nessa próxima foto, estava colando grau na graduação e tinha acabado de ser aprovada para fazer mestrado em uma das instituições mais renomadas do país. 



    Eu me via gorda e toda aquela felicidade de estar realizando coisas grandiosas estava sempre embebida de uma frustração com meu corpo. Sequer tenho foto do dia da defesa do meu mestrado, eu não me importei o suficiente para guardá-las porque não gostava do que eu via nelas. Eu não via o resultado de 3 anos de trabalho árduo. Eu só via a mim mesma e me via gorda.

    Ainda muito nova, comecei a perceber que a gordofobia é um grande problema social que mina especialmente a autoestima das mulheres e sempre me opus energicamente às ações, minhas e dos outros, que produzissem julgamentos a partir das características do corpo das pessoas. Mas nunca conseguia aplicar isso para mim mesma. Eu me martirizava, me sentia vazia e desimportante por ser gorda. Se você veio até aqui, tenho certeza que já encontrou o erro: eu sequer estava acima do peso. No entanto, sofria com ansiedade, compulsão alimentar, muitas vezes me opunha a ir a eventos sociais, tentava vomitar o que comia, etc.

    Já há muitos anos venho tentando mostrar para mim mesma o quanto meu corpo é perfeito e tudo o que ele já fez e faz por mim. Já subi picos pra ver o mundo de cima, já pedalei mais de 50 km, já corri muitos km e me senti livre, já visitei lugares incríveis e conheci pessoas inesquecíveis, tenho uma família amorosa e um parceiro de vida pra quem é até difícil encontrar adjetivos. Tudo isso foi conquistado por meio do meu corpo perfeito! Depois de muita terapia e estudo, já venho me sentindo melhor há algum tempo e cultivando um sentimento verdadeiro de respeito e admiração pelo meu corpo. Mas acredito que o momento derradeiro, que marcou uma grande virada foi minha última viagem em dezembro do ano passado.

Fui para Santiago visitar minha mãe e mais uma vez tive experiências incríveis (fotos abaixo). Um dia, caminhando sozinha pela praia de uma cidade vizinha, senti muito profundamente uma enorme gratidão pela vida, por poder fazer tudo que faço, por poder viajar e ter para onde e para quem voltar, por ser quem eu sou exatamente como sou. Cada parte do meu corpo conta minha história e ajuda a constituir quem eu sou. Não sou somente o meu corpo, sou amiga, mestra em história islâmica, professora de inglês, viajante... Sou persistente, empática, me preocupo com as pessoas à minha volta, gosto de ajudar e me cobro para dar o melhor de mim em tudo o que faço. Sou muito mais que meu corpo, mas também sou meu corpo! Meus músculos, minha força, minha capacidade de reflexão, minhas tatuagens, minhas mãos pequenas. Assim como minha gordura extra, meu culote e minhas curvas, eles também fazem parte da minha história! Esse dia foi extremamente importante para que eu visse com clareza a sorte que tenho de ser eu! Desde então, venho construindo minha autoestima de uma maneira diferente.





 




Uma reflexão sobre o amor romântico e a solitude

    Estou sozinha há quase duas semanas, já estive só por mais tempo que isso, mas sempre em outras circunstâncias. Dessa vez, estou de férias inteiramente só em uma cidade desconhecida, em meio a uma pandemia sem fingir que ela não existe mais. Sou só eu e eu. Há uma palavra e inglês que eu gosto de usá-la para me definir: eu sou uma “people person”. Gosto de conhecer pessoas, de falar alto , gosto daquele barulho de uma mesa de bar cheia de gente conversando ao mesmo tempo. Cresci em uma cidade do interior de MG, mas, ao contrário do que muitos podem pensar''ao imaginar as tais cidades, minha infância e adolescência não foram pacatas, eu estava sempre cercada de pessoas. Também gostava da tranquilidade do mato, das trilhas e cachoeiras, mas estava normalmente acompanhada. E quando não estava, sentia falta. Não estava inteiramente ali, metade de mim ficava fincada na solidão. Também já gostava de sair só vez ou outra e sentia prazer genuíno nesses momentos, mas sempre pensei que gostava deles como exceção. A solitude, se não fosse exceção, virava solidão e me incomodava profundamente.

    Estou em um relacionamento monogâmico há mais de oito anos com alguém com quem construí uma vida de muito amor. Nunca acreditei em amores semelhante aos dos contos de fada e dos filmes de Hollywood. Nunca achei que o amor devesse se construir sobre renúncias e que devesse se propor como suficiente. Acredito que essa concepção de amor romântico nos destrói, já que nos faz construir expectativas que nascem para serem frustradas. Já há muito tempo, sequer acredito no amor monogâmico como sinônimo de felicidade.

    Apesar disso, foi exatamente o tipo de amor que eu construí pra mim. Forte, intenso, que se propôs suficiente e cheio de expectativas frustradas dos dois lados. Não foi culpa dele, nem minha. Só foi assim, primeiro, nos deixamos levar pelo fluxo das coisas. Deixar-se levar pelo fluxo pode ser bom e leve, mas às vezes ele nos leva a lugares comuns que não são nossos lugares, que não no cabem. Em segundo lugar, construí esse tipo de amor por medo da solidão. Falo por mim, mas ouso estender isso a ele também. Acredito que por muito tempo formos bem-sucedidos em ajudar o outro a escapar da solidão. Até que, então, não éramos mais. Ele passou a lamentar que constantemente se sentia solitário. Aquilo me doía profundamente porque eu acreditava que fazia tudo por ele, que doava até muito mais do que dava conta, como o amor romântico nos diz que deve ser. Foi aí que, em terapia, descobri que eu também me sentia só. Percebi que eu dava a ele o tipo de carinho e atenção que queria receber e o mesmo acontecia do outro lado. Percebi que dava a ele o que deveria estar dando a mim mesma: a atenção, o carinho, o espaço na minha vida. E me doía muito quando ele dizia que o que eu fazia não era suficiente. Estávamos os dois muito alienados no amor romântico e na expectativa de receber do outro o tipo de atenção e amor que só nós mesmos podemos nos dar. É como se houvesse um buraco que se não investimos, nós mesmos, energia e atenção para tampá-lo, nenhuma terra que o outro jogue será suficiente. Projetar no outro esse amor é como tentar curar uma úlcera com remédio pra dor: ele parece funcionar a princípio, mas com o passar do tempo já não faz mais efeito e o médico te diz que aqueles remédios, que só reduziam a dor sem tratar o problema, só fizeram irritar mais seu estômago e a úlcera piorou.

    Em terapia, venho percebendo que o remédio para minha úlcera é enfrentar o medo da solidão. Era encontrar tranquilidade na minha própria presença. E por isso eu saí. Eu gostaria de dizer que esse processo já está encerrado, que é fácil estar comigo. Tenho, sim, encontrado profunda satisfação na solitude em muitos momentos. Às vezes eles duram só alguns segundos e às vezes fico nesse estado por dias. Nesses momentos, não choro minhas faltas nem meus excessos. Mas outros são melancólicos e cheios de medo. Em outros ainda, volto a ser uma menina frágil deitada em posição fetal esperando ser salva.

    Ainda sou aquela mulher “people person” que sempre fui. Não pretendo fazer da solitude um estilo de vida, sei que não levo jeito pro isolamento total. Mas espero que esse tempo sozinha continue me fazendo o que tem feito, que ele me dê tempo e tranquilidade para refletir, pra me conhecer e pra encontrar prazer na minha própria presença. Pra que eu possa fazer escolhas e tomar decisões sem que o fantasma do medo da solidão me assombre. E espero voltar mais madura pro meu ciclo social e, quando essa pandemia sem fim acabar, espero poder construir outros ciclos sociais por onde eu for. E ainda me permito seguir alimentando o sonho romântico de construir e reconstruir amores. Mas espero sempre saber ir embora quando os lugares não me couberem mais, ainda que saia só.






João e a espera pelos feijões mágicos

     Quando penso em João, eu fico querendo saber fazer poesia. Ele merece poesia porque tem ali um espírito todo feito por poesia. Talvez por isso ela o encante tanto quanto me apavora. Ele tem um jeito bem próprio de olhar a vida de maneira crítica e nesse ponto ele é imprevisível. Como um personagem do seu livro favorito, ele tem "um truque que consiste em afirmar as coisas mais óbvias com grande profundidade". João não gosta de não saber das coisas e por isso pode passar horas lendo páginas de enciclopédias. E se alguém falar sobre as borboletas azuis da Sibéria, João vai provavelmente saber que que as fêmeas dessa espécie são na verdade marrons. Uma vez ele me disse que se tem algum conhecimento que, por mais difícil que seja, pode ser acessado por algum ser humano, isso significa que outros seres humanos também podem acessá-lo se se esforçarem muito naquela direção. Ele quer aprender russo, conhecer Singapura, ler Dostoiévski e dominar a filosofia grega. Ele quer conquistar o mundo, não como os colonizadores fizeram, mas como aquela pessoa que ele uma vez conheceu no Maranhão que estava viajando o mundo de bicicleta. Se tem uma coisa que João sabe é sonhar. Só que João ainda não sabe realizar. "Focar em um sonho e tentar realizá-lo é desistir dos outros", ele me disse um dia. Talvez por isso, hoje ele se sinta perdido e diga que não gosta de quem se tornou. Se João pudesse se olhar com meus olhos por um instante, talvez ele veria a beleza de ser quem é. Talvez  porque eu o olho sob as lentes do amor que ele perdeu em algum momento da vida. Elas me permitem ver através das camadas de escudos que ele criou pra se proteger da dor que é viver no mundo e em sua própria pele. Talvez, entre tanta coisa que João sabe, haja uma que ele ainda desconhece: a dor é necessária porque é ela quem nos faz humanos. Fugir dela é fugir de sua própria humanidade e acolhê-la é conhecer-se. Viver dói, só que não viver dói mais. João sofre por se sentir perdido e outra coisa que ele talvez desconheça é que reconhecer-se perdido é o primeiro passo pra se encontrar. Estar perdido dói, mas aceitar como uma condição própria e eterna algo que é uma fase presente inerente à vida de todos os seres humanos é auto tortura. João é extremamente sensível e empático, resultado, talvez, de ter sido criado por tantas mulheres admiráveis. Só que há outra característica da criação das mulheres que João também absorveu, ele sonha em ser salvo, como uma princesa dormindo em uma torre de marfim esperando o beijo do seu príncipe encantado para acordá-la ou como um católico fervoroso aguardando pelo retorno de Jesus. E aí, há uma obviedade que eu gostaria de conseguir dizer com a profundidade das obviedades que ele diz: não existe salvação fora de nós mesmos! Ninguém está vindo pra nos salvar e nos presentear com a vida de nossos sonhos. Ela precisa ser galgada por nós mesmos. E essa consciência dói, mas dói mais viver uma vida de expectativas pelo depois enquanto se perde os agoras. A mim, só resta desejar muito que a vida convença João de que ele é suficiente para plantar seus próprios pés de feijão. 

sábado

Luísa e Lorraine

     No momento em que escrevo, estou em uma vila em Diamantina, uma antiga fábrica de tecido desativada em 1975. Ouvi de um senhor que estava na vila trabalhando como marceneiro, com quem conversei ao chegar ali, que "há 30 anos atrás isso aqui era uma muvuca só de trabalhadores entrando e saindo da fábrica e suas famílias ocupando as casas", hoje em sua maioria vazias. Estranho é que há 30 anos atrás a fábrica já estava desativada há pelo menos 10. Talvez ele esteja, como eu mesma, com problemas para perceber a passagem do tempo. Talvez a noção de quanto tempo se passa em um ano seja um mistério somente acessado por poucos.

    Desde que cheguei aqui, fico pensando que queria muito saber desenhar. Infelizmente, só sei desenhar bonecos de palito e um sol saindo feliz de trás das montanhas, como uma criança de 5 anos. Mas se eu soubesse desenhar, desenharia as montanhas que cercam todo o local como se o abraçassem. No meio do abraço das montanhas, desenharia um gramado enorme, bem verde e muito bem cuidado. E o desenharia cercado por casas bem brancas com janelas e portas azuis naquela arquitetura que chamamos bem toscamente de "colonial". Nesse gramado bem grande, desenharia árvores, quase todas bem verdes e algumas, a despeito do inverno, até com flores. Me impressionam as árvores das regiões tropicais, elas parecem se recusar a aceitar os ciclos das estações e se recusam a abdicar da beleza de seu "verdedume". Em meio a tantas árvores verdes, desenharia diante de mim outra quase completamente sem folhas, toda cinza. E imagino que se eu pudesse estar aqui no verão provavelmente a veria tão esplendorosa quanto as outras. Aparentemente, essa sim se rendeu aos ciclos da natureza. Na ponta desse gramado, desenharia uma igreja cujas formas não sei reconhecer, apesar da tão familiar arquitetura do local. Certamente saberia mais se tivesse prestado atenção às aulas de História da Arte na faculdade. No meio do gramado, desenharia um pergolado com seis pilares e quatro bancos dentro. Emaranhado nele, flores de um cor-de-rosa bem intenso que se entrelaçam quase formando um telhado. Parece que elas nasceram dali mesmo, das vigas de concreto, como se em mais uma rebelião contra a natureza.

    Sento-me em um desses bancos, o dia está está ensolarado e convidativo, apesar do vento frio. Vejo duas meninas aproveitando o cenário para se fotografarem. Chamo uma delas e peço que me tire uma foto ali e comento que o ponto negativo de viajar sozinha é não ter ninguém pra bater nossas fotos. O nome dela é Luísa, ela tem 17 anos e não gosta de viver em Diamantina porque, segundo ela, é pouco interessante. Enquanto se posiciona pra bater minha foto, ela comenta com sua amiga, Lorraine, que um dia quer gostar tanto de si mesma a ponto de conseguir viajar sozinha. Antes de ir embora, ela me faz várias perguntas e o interesse dela pelas minhas respostas faz minha vida parecer bem mais interessante do que de fato é. Depois de alguns minutos de conversa, Lorraine já está posicionada embaixo de uma árvore com flores bem vermelhas esperando por uma foto. Luísa se despede e eu desvio o olhar disfarçando meu interesse pela cena. As duas são magras, brancas com cabelos bem pretos e artificialmente lisos, vestem roupas justas, são meninas muito bonitas. Elas não olham para os lados, estão inteiramente focadas nelas próprias e em como estão aparecendo nas fotos. Lorraine está posando para a foto de lado e se precupa: "minha barriga não está grande?". Luísa responde que sim. A resposta com tom de bincadeira carrega uma pitada de sinceridade da parte de Luísa. Luísa pode até já se amar muito, mas ainda não sabe disso. Penso em dizer algo , mas sei que não há nada que possa dizer que fará tanto sentido quanto a passagem do tempo. Me calo e so torço para que Luísa, Lorraine e todas as meninas do mundo possam se render à passagem do tempo e aos ciclos da vida como aquela árvore diante de mim. Torço para que todas as meninas permitam que o fluxo da vida as traga a leveza de aceitar.

















quinta-feira

Encaracolando-me

         A ideia de compartilhar minhas reflexões sobre o mundo em um blog sempre esteve aqui. Tenho um caderno onde faço algumas anotações, mas o diário é inerentemente privado. Nos últimos anos venho fazendo as pazes com o gosto pela exposição. Neguei-o por muito tempo, tinha medo dos julgamentos, de ser ridícula publicamente, de não ser aprovada. Mas venho resignificando todos esses sentimentos e sensações por meio de um processo psicoterápico cujo objetivo principal é encontrar a mim mesma, conhecer as características da minha própria personalidade após ter passado por uma depersonificação ao longo do processo de "adultização". Sinto que esse blog vem ao encontro desse movimento. 

    Mas pra eu conseguir te explicar esse nome, preciso te dar um pouco de contexto. Escrevo hoje de Diamantina e estou aqui há 4 dias. Diamantina é a primeira parada do que eu planejo ser um longo trajeto. Sou professora de inglês e a pandemia fez com que meu trabalho ficasse totalmente online. Percebi que essa liberdade geográfica é tudo que eu precisava pra viver um grande sonho que nunca achei que fosse possível realizar: viver na estrada. A ideia era fazer isso com meu companheiro, com quem vivo há mais de 8 anos, mas ele descobriu que o momento dele é outro e eu decidi que não posso esperar. Descobri que o movimento é parte constitutiva de mim e abandoná-lo é abandonar a mim mesma. Estou reduzindo todas as minhas posses até um montante que caiba em duas mochilas e vou levar minha casa nas costas. Enquanto dirigia pra cá, me peguei me admirando pela coragem de estar colocando em prática tantas mudanças e percebi que meu objetivo é viver como um caracol: carregando a casa nas costas, sempre em movimento; devagar, sem pressa, no tempo de sua própria condição, mas sempre em movimento; às vezes fazendo pausas estratégicas, recolhendo-se, pra depois voltar a "caminhar". 

    Mas o caracol representa outros símbolos pra mim, ele é um bicho feio pra daná. Você pode até não odiar caracóis, mas certamente concorda que bonito ele não é. Vincular-me a esse bicho feio, de que muita gente sente asco, é emblemático e representa o meu desencontro com a necessidade da beleza (assunto pra outro texto). Ser um caracol deve ser libertador, ele não carrega em sua concha nenhuma expectativa de sucesso, de encanto, de perfeição ou grandiosidade. Ele só é. 

    O verbo "encaracolar" já existe, mas aqui ele carrega o desejo de virar um caracol e vem no gerúndio pra lembrar que é processo: não é "-ei", nem "-lharei", é "-ando".




Como vai você?