Qual seu grande sonho? Comprar aquele carro que não sai da sua cabeça, conseguir aquela promoção que vai resolver seus problemas, ganhar na loteria...
Os sonhos parecem estar ligados com a própria noção de humanidade. Ter a capacidade de olhar para o futuro com alguma expectativa, de criar um ideal onde desejamos estar, é um dos atributos que nos homogeneízam como humanos. Pessoalmente, meu sonho é viver viajando, seguir conhecendo pessoas, culturas, saboreando comidas e apreciando vistas que antes não conhecia. Me reconheço como uma mulher privilegiada em vários sentidos, e um desses privilégios é poder estar agora mesmo perseguindo meu sonho. Nesse momento, eu, meu companheiro e nossas gatinhas estamos pousados em São Paulo, a cidade que não para, que é o céu para muitos e o inferno para outros tantos. E é a cidade que tem me feito questionar sobre sonhos, humanidade e desumanização.
São Paulo escancara a desigualdade como nenhuma outra cidade que já visitei. E escancara também o egoísmo e o individualismo próprios de nosso tempo. A cidade parece se cegar para a crise humanitária que acontece aqui. Conversei com um amigo daqui sobre essa impressão e ele disse que você se choca ao ver tanta gente em situação de miséria, mas a consciência de que não se pode fazer nada faz com que, ao longo do tempo, as pessoas se acostumem e percam um pouco da sensibilidade. Parece que para viver em São Paulo, a cidade que nunca dorme, é preciso que você sim esteja adormecido, senão você não vive.
Essa foto abaixo foi tirada na Praça da Sé, um dos principais cartões postais da cidade, parece que está acontecendo um evento reunindo várias pessoas, né? Podemos ver algumas barracas às margens da praça, talvez seja um evento mais longo e as pessoas estão acampando como nas raves que duram dias e onde os jovens brancos e ricos gastam rios do dinheiro de seus pais. Mas o evento aqui é a miséria, programada e financiada pelo Estado. Essa foto me faz pensar que estamos todos nós adormecidos.
| Praça da Sé, São Paulo. Novembro de 2021. |
Eu olho para as pessoas dessa
foto e me pergunto quais os sonhos desses homens, mulheres e crianças, mas a resposta
nós já temos. Em outubro desse ano, um evento nos chocou profundamente, Rosângela
Sibele de Almeida Melo, 41 anos, foi presa após roubar cerca de R$21,00 em
miojo de um supermercado. Quando foi pega, explicou aos policiais que estava
com fome e que precisava alimentar seus filhos. Se Rosângela fosse gente,
talvez não teria sido presa, mas Rosângela mora nas ruas há dez anos, pra ela a
lei serve para punir e cobrar os deveres, mas nunca para garantir seus direitos. Depois de 18 dias presa, ao sair do cárcere disse “Meu grande sonho é ser
gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha, irmã”.
Outro caso que não me sai da cabeça
é de um vídeo que viralizou há algumas semanas de um senhor gritando em uma rua
entre prédios em Brasília. Ele pedia algum pão ou leite, em sua voz soava
desespero. Ele gritava “é fome, é fome!”. Esse senhor cujo nome nem sabemos
também não é gente, foi desumanizado pelo Estado, que não deveria existir se não fosse para proteger as pessoas. É desumanizado por todos nós quando
olhamos para o outro lado e fingimos não ver. É desumanizado a cada quatro anos
quando damos nosso voto e nosso apoio a projetos que visam marginalizá-los cada
vez mais enquanto os super ricos multiplicam suas fortunas e criam herdeiros
que vão continuar regendo o mundo e se certificando de que as coisas permaneçam
exatamente como estão ao convencer-nos de que é assim que é justo.
No estado de coisas como são, a humanidade é dividida entre quem é gente e quem é bicho. Sem bem que ainda tendemos a ter ainda mais empatia com alguns bichos do que com os bichos humanos. Hoje lendo o jornal, me deparei com essa manchete:
A reação do dono do
estabelecimento foi essa:
Agora você imagina o que Rosângela
pensaria lendo essa notícia! Imagina o que ela pensaria se soubesse como
minhas gatas são bem cuidadas! Talvez ela pensaria que se não conseguir nunca
ser gente, ela bem que poderia pelo menos ser pet!
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(O Bicho, Manuel Bandeira. 1947)
Que soco no estomago. Que nó na garganta... Sensação de estar adormecida, de importencia, de indignação, de incredulidade, de tristeza, de tudo junto. Que tristeq. Que triste. :(
ResponderExcluirMuito, Dênia!
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