quarta-feira

Um desencontro com a beleza

 


    Essas são minhas pernas e essas estrias são minhas. Me lembro da primeira vez em que vi uma estria no meu corpo. Eu devia ter uns 13 anos, naquela época em que nossos corpos crescem e mudam muito rapidamente. Eu gritei a minha mãe, um grito cheio de desespero. Eu achava que tinha nascido pra ser bonita e sentia que aquelas estrias, que ali mesmo já sabia que seriam permanentes, estariam para sempre no meu caminho. 

    Eu fui uma criança bonitinha, magrinha, loirinha, bem dentro do padrão. Eu era esperta também, um combinação que atraiu muita atenção pra mim. Quando criança, me lembro de sonhar em ser modelo ou atriz. Eu era popular na escola. Cresci com a auto estima da menina branca privilegiada que era/sou. Hoje entendo que essa auto estima não é simplesmente construída, ela é roubada de meninas negras. E eu roubei isso delas e me destruí no caminho.

    Ao crescer, fui obrigada a lidar com rejeições e com a consciência de que eu era só mais uma menina normal. Não soube. Continuava achando que tinha nascido pra ser bonita. Em grande parte da minha vida, não importava onde eu estivesse ou o quão grandioso era aquilo que estava realizando, eu estava sempre preocupada com o quão gorda eu estava, pois essa era uma medida de beleza pra mim. Eu me olhava em todos os reflexos para verificar como estava, tomava remédio pra emagrecer, passava horas sem ingerir nada e depois comia compulsivamente. 

    Há alguns anos eu venho qauestionando a necessidade do belo e da excelência. Você já parou pra pensar o quanto já deixou de realizar porque acreditava que não construiria algo belo ou que não alcançaria a excelência? Eu gostaria de saber cantar e tocar algum instrumento, mas tenho consciência de que nunca serei excelente nisso. Mas será que eu não me divertiria no processo de aprender? Será que isso não poderia ser suficiente? Sempre que estou diante de algo que me emociona, eu sinto vontade de desenhar, mas só sei criar bonequinhos de palito e até eles são feios. Já escutei várias vezes que desenho é técnica e que técnica se estuda e se aprende, mas tenho a consciência de que nunca serei uma desenhista excelente, então nunca sequer cogitei explorar a desenhista medíocre dentro de mim. O medo de um resultado feio paralisa inícios, processos e recomeços em mim. O feio, o desimportante, o banal são fracasso pra mim. 

    Venho tentando descontruir esse medo do mediano por meio de três lugares principais: a arte, a escrita e a relação com meu corpo. Na arte, venho tentando me expressar por meio de colagens em madeira, alguns resultados eu amei e outros nem tanto, mas as horas em que passo me dedicando a isso são de uma tranquilidade e encontro comigo mesma muito intensos. Nesse momento da vida em que escolhi me desfazer da maioria dos objetos não essenciais, ainda cabe na mochila uma das minhas colagens mais representativas, ela virou meu totem e está sempre comigo para me lembrar de que, ainda que eu não possa tudo, eu posso muito. Ela não é bonita, mas não foi pra isso que ela nasceu.

A imagem é de autoria da Amanda Orleander
    

    A escrita sempre foi parte fundamental de mim. Ainda criança, me lembro de me sentar em minha mesa de estudos com algumas folhas em branco diante de mim, decidida a escrever um livro. Naquela época, acredito não ter sido ainda o medo do resultado que me paralizou, mas eu não sabia o que fazer. Sabe aquela sensação de ter uma ideia na cabeça e ficar completamente perdida na realização? Eu não tinha meios para aquilo e desisti com a mesma naturalidade e tranquilidade com que me sentei ali. Na adolescência, escrevia muitas cartas para minhas amigas e amigos e já usava a escrita para desabafar e colocar o pensamento em ordem. Na vida adulta, me vi diante da pressão dos trabalhos acadêmicos e de ter que escrever uma dissertação de mestrado relevante. Travei muitas vezes, quis desistir como desisti do livro sobre o meu avô quando pequena, mas acabou saindo um texto do qual ainda me orgulho. Hoje, escrevo uma espécie de diário público que me ajuda a lidar com minha própria pressão pelo belo. Não sou artista, não sou escritora. Amo quando escrevo algo que acho bonito, mas amo ainda mais quando escuto de pessoas próximas que eles conseguem me ver nos meus textos. Hoje mesmo, ouvi de uma amiga que ela sentiu minha essência nesse blog. Por que eu preciso focar na beleza dos textos se eu tenho  reflexão, intensidade e transparência? Não necessariamente no resultado, mas no processo.

    Quanto ao meu corpo, aprendi com minhas companheiras feministas que amá-lo é revolucionário. Que há beleza fora dos padrões de imagem que nos enfiam goela abaixo. Às vezes, olho pro meu corpo e vejo beleza, às vezes não. Mas a consciência de não ser bela não me paraliza mais. Eu olho para minhas estrias, controlo o desespero infantil que ainda me vem irracionalmente e tento mostrar pra mim mesma que essa é a casa da mulher que eu sou. Meu corpo realiza muito, produz muito, é ativo, é saudável, pode dar prazer a mim mesma e ao outro. Ele é muito mais do que a dualidade bonito versus feio. Eu não preciso achar linda cada parte do meu corpo, mas não respeitá-lo e sentir ódio ou asco por ele não é justo. Hoje eu sei que não nasci pra ser bonita. Na verdade, hoje tenho a tranquilidade de admitir que eu não tenho a menor ideia de pra quê raios eu nasci. Enquanto eu não descubro, vou traçando meu caminho no caminho.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Como vai você?