Sento para comer e, como de costume quando estou sozinha,
abro um livro. Digo “abrir um livro” por força do hábito porque há pouco tempo
precisei me adaptar às versões digitais para conciliar a leitura com meu motor
interno que me impele ao movimento. Uma biblioteca não cabe na mochila. Assim
como tantas outras coisas que tentei fazer caber na mala, precisei renunciar
aos meus tão preciosos livros. Precisei deixá-los. Bom, o que faço então, no
fim das contas, é menos poético, ligo o kindle.
Escolhi o que ia ler antes de sair para o restaurante, um
livro que me foi sugerido por uma quase desconhecida há uns meses atrás quando
me abri com ela sobre o que tenho carinhosamente chamado de “o projeto”: sair
andando sem rumo a procura de respostas para as quais sequer conheço as
perguntas. Ligo o kindle e já na introdução sou invadida por aquele
famigerado sentimento de identificação: “eu poderia ter escrito isso”. A
inspiração para os contos da autora é sua estadia em Buenos Aires. Ela é de Minas
Gerais. Fala sobre memória e esquecimento, temas que me são tão caros.
Trata-se de um livro de contos e o primeiro deles já me leva
às lágrimas. O segundo, de 3 linhas, nos dá instruções sobre como carregar
malas pesadas. A obviedade da orientação me perfura como faca: não as carregar!
Há que deixar os livros, há que deixar. Paro. Estou em um restaurante, não
poderei seguir lendo ali se quiser evitar a vergonha de chorar em público.
Reflito sobre como às vezes nada parece se encaixar e a vida te entrega de
bandeja uma sutileza quase imperceptível que dota algumas coisas de sentido. Não
tudo, mas às vezes um ponto de luz já é suficiente para seguir caminhando.
Já disse que o livro foi me sugerido por uma quase
desconhecida. Nos vimos uma vez e conversamos só por algumas horas, mas foi o suficiente
para que ela notasse que eu precisava lê-lo. E ela não só me o
recomendou, mas me enviou uma cópia digital dele. Ela se esforçou para que uma
quase desconhecida pudesse experimentar algo que, por meio de sua aguçada
sensibilidade de escritora, percebeu que eu precisava. Senti como se algumas
peças estivessem se encaixando: eu precisava conhecer Thamires naquele dezembro
em que ambas estavam tão atarefadas. Eu precisava conhece-la ali pra que eu
tivesse esse livro nas mãos HOJE. Enquanto contemplo a beleza desse gesto e
quase posso ver as mãos do destino trançando seus fios em seu infinito tear,
percebo que o quase-choro já passou e que estou pronta para tentar o próximo
conto.
O terceiro conto narra como a personagem sentiu que saiu de
Minas Gerais, andou quase dois mil km, caminhou 30 quadras sob um sol de 40
graus só para encontrar, em outro país, um poema de Drummond, também mineiro
como nós. Incrédula, penso que talvez eu e Flávia sejamos a mesma pessoa em
linhas temporais diferentes. Olho para o título do conto, ele se chama “Golpe
de sorte”.
Thamires foi um dos tantos golpes de sorte da minha vida nos
últimos meses e me lembro que eles só aconteceram porque eu liberei espaço na
minha mala, porque deixei meus livros. A falta dos livros às vezes pesa mais do
que a mala inteira, mas hoje, logo hoje, Thamires veio do passado me apresentar
Flávia, que fala sobre golpes de sorte. E hoje me bastará deixar o livro
digital de Flávia guiar meus pensamentos mais do que a saudade de tocar meus livros
físicos.